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Só Acontece aos Outros | Crítica | Pedro Correia | Blog Delito de Opinião

 

Só Acontece aos OutrosSó Acontece aos Outros - Histórias de Violência | Literatura de não-ficção, jornalismo
Autora: Maria Antónia Palla
Prefácio: Helena Matos
Literatura de não-ficção, reportagens
ISBN: 978-989-99946-1-4
240 páginas.

 

É um erro remetermos a prosa jornalística para a gaveta dos textos efémeros. Desde logo porque o jornalismo é «o primeiro rascunho da História», na certeira definição de um antigo director da revista Time, Phil Graham. E também porque alguns dos maiores escritores de sempre passaram pelo jornalismo e deveram a esta aprendizagem da «mais bela profissão do mundo», como dizia Albert Camus, muito do que lhes viria a ser útil nos seus livros - desde a técnica de escrita à consolidação das rotinas de trabalho, passando pelo indispensável olhar atento à realidade circundante. Gigantes da literatura como Balzac, Poe, Dickens, Twain, Eça, Chesterton, Hemingway, Orwell, Greene, García Márquez, Vargas Llosa e o próprio Camus experimentaram o jornalismo profissional antes de se consagrarem em exclusivo à escrita literária.
Os melhores textos jornalísticos sobrevivem largamente à circunstância que os viu nascer. Textos de Nelson Rodrigues ou Luís Fernando Veríssimo no Brasil, de Rosa Montero ou Manuel Vásquez Montalbán em Espanha, de Rodrigues Miguéis ou José Saramago em Portugal.
Pensei nisto enquanto lia uma das mais surpreendentes obras que me passou pelas mãos nos últimos meses - precisamente uma recolha de textos jornalísticos de Maria Antónia Palla, quase todos publicados na extinta revista O Século Ilustrado, de excelente memória. Aqui pulsa o quotidiano amargo de um certo Portugal que tende a eternizar-se, onde a compaixão pelos mais fracos e pelos que mais sofrem é genuína e não postiça, onde uma era que ainda muitos de nós vivemos ressurge documentada em carne viva.
É um conjunto de reportagens publicadas entre 1970 e 1979, reunidas originalmente em livro pela Bertrand em 1979 e em boa hora relançadas, numa nova chancela editorial que junta dois textos inéditos, escritos em datas posteriores, e conta com um bom prefácio de Helena Matos, que nos chama a atenção para o facto de estas histórias de violência serem protagonizadas ou sofridas por mulheres, jovens e crianças. Num evidente desmentido à falácia dos "brandos costumes" que supostamente nos caracterizam.
Cada texto é uma espécie de murro no estômago do leitor - testemunho de época, num país em que perduravam fortíssimas marcas rurais, a pobreza era endémica e a guerra em África ainda se divisava no horizonte. Mas é também um alerta para situações que não pertencem apenas ao passado. A menina que desapareceu e é encontrada dias depois, num silvado, com sinais de ter sido assassinada. A idosa violentada por um rapazola alcoolizado. O jovem homossexual algarvio que se terá suicidado numa prisão de Huelva. A filha de uma prostituta morta à patada pelo companheiro da própria mãe. A rapariga abandonada que asfixia o bebé que acabara de dar à luz.
Retalhos de um país sombrio, em perfeito contraste com as vidas bonitas e esplendorosas que costumam fazer manchetes. Ao contrário do que Chico Buarque canta, aqui a dor da gente saiu mesmo no jornal. Agora regressa já como literatura. Vai perdurar, estou certo disso.

 

Pedro Correia, 09 de Junho de 21018, blog Delito de Opinião

 

 

 
 
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