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Eu Matei Xerazade | "A cólera profícua" | Crítica de José Mário Silva | Revista do Expresso

 

Eu Matei Xerazade - Confissões de Uma Mulher Árabe em FúriaEu Matei Xerazade - Confissões de Uma Mulher Árabe em Fúria
Autora: Joumana Haddad
Tradução: Inês Pedrosa
Literatura, memórias, ensaio
ISBN: 978-989-99946-0-7
178 páginas.

 

A cólera profícua

Este livro híbrido — uma mistura de pequenos ensaios, apontamentos autobiográficos e exercícios poéticos — nasce de um impulso de indignação. O subtítulo não podia ser mais esclarecedor: Confissões de Uma Mulher Árabe em Fúria. A cólera costuma ser um sentimento cego, pouco racional, mas no caso da libanesa Joumana Haddad (n. 1970) gera uma energia profícua. A autora insurge-se contra a visão ocidental da "mulher árabe", reduzida a estereótipos de submissão e passividade, quando a realidade é muito mais complexa. A beleza de Eu Matei Xerazade reside nisto: Haddad escreve com fúria, sim, mas a sua escrita não é zangada. Pelo contrário, tem uma textura festiva, é um regalo para os sentidos, um belo exemplo de aliança entre inteligência e alegria. Se a autora começa por problematizar a questão da identidade feminina, analisando-a a partir de vários ângulos, logo abre o campo da reflexão, desmontando as "simplificações" sobre o mundo árabe, ao mesmo tempo que lhe aponta equívocos e impasses, nomeadamente o "espírito de rebanho" e "a arte da esquizofrenia", culminando na necessidade de uma mudança que não pode vir de fora. Nos textos mais políticos, destaca-se o tom desabrido, a chamar os bois pelos nomes: "Estes obscurantistas retrógrados são ladrões. São profanadores. São assassinos. E, acima de tudo, são estúpidos." Não admira que seja vasta a sua lista de inimigos.

Joumana haddadAs considerações teóricas cruzam-se com capítulos em que Haddad se olha ao espelho, recuperando histórias da sua infância: memórias do nascimento de uma personalidade insubmissa, por baixo de uma aparente docilidade ("Eu era um nó de contradições"), reminiscências da guerra civil e um hino aos poderes da literatura como meio de conhecer o mundo ("lia para respirar"), no qual é narrado o seu encontro precoce, aos 12 anos, com a prosa devastadora do Marquês de Sade (um verdadeiro "batismo na perversão"). Haddad também recupera episódios da vida adulta, nomeadamente sobre a escrita de poesia erótica e a aventura de publicar uma revista "sobre o corpo" em árabe, com representações sexuais que provocaram um enorme escândalo. E faz uma defesa do feminismo que não oblitere a feminilidade ("Sou uma intelectual, mas preocupo-me tanto com as rugas e com o peso como com o facto de não ter ainda lido o último Kundera"). Num gesto de rutura e provocação, Haddad decide "matar" Xerazade, vista como um símbolo das mulheres obrigadas a negociar a sua salvação com um poder masculino. No lugar da heroína das Mil e Uma Noites, coloca uma narradora (ela própria) capaz de criar o seu próprio espaço de liberdade. Um lugar onde cabe a autocrítica mais feroz: "Muitas vezes fui arrogante. E perdi o privilégio de ser humilde; (...) muitas vezes escolhi o egoísmo em vez da generosidade. E perdi o que não dei." Ou um autor retrato final em forma de poema: "Eu sou a neta da criança que fui; (...) Eu sou o meu deus e a minha avidez; / as minhas ausências preenchidas com os meus mortos; / e sou os meus mortos que nunca dormem." (4 estrelas)

José Mário Silva in Revista do Expresso, 21/10/2017

Provocador e poético, o ensaio de Joumana Haddad é um notável exercício de liberdade





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