Eu Matei Xerazade - Confissões de Uma Mulher Árabe em Fúria –
Autora: Joumana Haddad
Tradução: Inês Pedrosa
Literatura, memórias, ensaio
ISBN: 978-989-99946-0-7
178 páginas.
Xerazade do século XXI
Intelectual libanesa, Joumana Haddad escreveu um ensaio provocador, com elementos autobiográficos, sobre o lugar da mulher na sociedade árabe e no mundo.
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O rastilho que levou Joumana Haddad, uma poetisa e ativista política libanesa, a escrever Eu Matei Xerazade - Confissões de Uma Mulher Árabe em Fúria foi uma frase dita por uma jornalista sueca. "A maioria dos ocidentais não imagina que existam mulheres árabes livres, como é o seu caso", lançou a entrevistadora. E a resposta de Haddad saiu-lhe brusca e agressiva: "Não me parece que seja assim tão excecional. Há muitas 'mulheres árabes livres' como eu. Se, como diz, desconhece a nossa existência, o problema é seu, não nosso." Menos a quente, Haddad procurou compreender as razões da sua intempestividade. O olhar simplista do Ocidente sobre a "mulher árabe" tocou-lhe numa corda sensível, e a indignação levou-a a refletir mais profundamente sobre o assunto. Um primeiro texto, curto e assertivo, foi crescendo e absorvendo materiais diversos, de conferências a "notas autobiográficas tomadas ao correr dos anos". O resultado foi um livro de combate intelectual, fragmentário e poético, intenso, orgânico, apaixonado, de uma enorme fluidez narrativa e bastante audaz na forma como defende os seus pontos de vista.
De visita a Lisboa, onde participou no encontro 'Mulheres nas Artes — Percursos de Desobediência' (que decorreu, no início desta semana, na Fundação Gulbenkian), a escritora volta a sentar-se em frente a um jornalista, desta vez com a tradução portuguesa do seu ensaio — livro inaugural de uma nova editora (a Sibila) — como pretexto para a conversa. O tom não é de acrimó-nia, muito pelo contrário, embora a energia da indignação permaneça: "Escrevi o livro em estado de cólera, sim, uma cólera despertada pelos lugares-comuns e imagens falsas que o Ocidente construiu sobre o nosso mundo, mas também pela indiferença de muitos árabes em relação aos problemas graves que temos e que é urgente enfrentar." O principal cliché que enfurece Haddad é a visão da mulher árabe como figura submissa, fraca, sem
qualquer controlo sobre a sua vida. "É evidente que essa mulher árabe existe. Só não representa toda a verdade. Há outras mulheres árabes que lutam há muito tempo e que vão conquistando pouco a pouco os seus direitos, a sua dignidade." Ao contrário do que sugeria a jornalista sueca, ela não se sente uma exce-ção. "Este livro é uma defesa dessas outras tantas mulheres árabes iguais a mim. Elas representam um ponto de luz no mundo árabe. Elas são a esperança. E a razão pela qual eu acredito que a mudança é possível. Se não acreditasse, teria desistido há muito tempo."
Detesto os eufemismos. Detesto a neutralidade. Como chegaremos a cura se não formos capazes de nomear o que está mal?
Outro erro comum consiste em abordar o mundo árabe como um todo, um bloco homogéneo, "quando ele é formado por 22 países muito diferentes, cada um com as suas particularidades". Nalguns casos, em comum têm apenas a língua (e às vezes nem isso). Quanto à questão do sexismo e da misoginia, parece-lhe abusivo limitá-la à influência do radicalismo islâmico. "Eu sou ateia, alguém que não acredita, mas recebi uma educação católica, imposta pela minha família conservadora. Pude por isso ver de perto como as duas religiões têm maneiras diferentes, mas igualmente hipócritas, de marginalizar a mulher e de exercer sobre ela vários tipos de violência." A hipocrisia, de resto, é o que mais a espicaça. "Detesto os eufemismos. Detesto a neutralidade. Como chegaremos à cura se não formos capazes de nomear o que está mal? Diante dos problemas concretos, é preciso denunciar, é preciso apontar o dedo. Se continuarmos a negar as coisas, nunca avançaremos."
Publicado em 2010, Eu Matei Xerazade foi escrito em inglês, não por qualquer tentativa de fugir aos leitores árabes mas porque Haddad é poliglota (fala francês, inglês, espanhol, italiano, arménio, alemão, e está a aprender português). "Salto de uma língua para outra. Deixo-me ir. A ferocidade, porém, mantém-se. Porque sou sempre eu." Entretanto, reescreveu o livro em árabe e até lhe acrescentou um prefácio, particularmente duro. "Esta é a minha maneira de escrever, sempre escrevi assim, é a minha voz. Não conseguiria, nem quereria, fazer de outro modo." Previsivelmente, as reações ao livro foram extremadas — do aplauso rendido às mais exuberantes manifestações de hostilidade e ódio. "Eu aceito isso, porque escrevo para desencadear reações. Sei que nunca serei unânime — e ainda bem. A unanimidade é perigosa." Além de textos de cariz mais reflexivo, o livro inclui testemunhos das suas experiências de vida, entre os quais memórias da duríssima guerra civil a que assistiu na infância (ainda guarda a fobia ao "som atroz de um assobio" que anunciava os ataques de mísseis, símbolo da "espera da morte") ou a apaixonada descoberta dos poderes da literatura, iniciada com a leitura, aos 12 anos, de livros proibidíssimos (desde logo o Marquês de Sade, que o pai escondia nas prateleiras mais altas da sua biblioteca). "Penso que não faz sentido dirigir -me ao outro, ao leitor, sem mostrar as cicatrizes que me conduziram ao lugar onde estou agora. Sinto que toco os outros porque me exponho totalmente. Mostro o lugar de onde as minhas ideias vieram, como se formaram. E sobretudo não escondo os meus erros, os meus defeitos, as minhas dúvidas. Fazer autocrítica é essencial se quisermos ser intelectualmente honestos."
Não obstante as muitas oportunidades que teve de abandonar o Líbano ao longo dos anos, Joumana Haddad nunca o fez. Continua a morar em Beirute, apesar da relação difícil que tem com a capital. "É uma cidade que me provoca. Amo-a e ao mesmo tempo detesto-a. Martirizou- me toda a vida, e continua a fazê- lo. Mostra se gentil para quem a visita, mas é insuportável para quem lá vive. E, ainda assim, não a consigo deixar." Decidida a ficar no país, o seu sentido de responsabilidade e um certo pragmatismo levaram-na a candidatar-se às próximas eleições nacionais, com o objetivo de se tornar deputada e contribuir para alterações legislativas concretas. A mais que provável animosidade dos sectores mais conservadores e os eventuais ataques à sua imagem pública não a assustam. Afinal, está habituada a esse tipo de resistência. Em 2009, teve a ousadia, ou a coragem, de lançar a primeira revista erótica em língua árabe. Jasad, que se pode traduzir por "Corpo", era uma publicação que acolhia ensaios, ficções e poemas sobre temáticas sexuais, o que gerou reações violentíssimas, incluindo ameaças de morte. "Aguentámos dois anos, um total de oito números. E só parámos por questões financeiras. Consegui vencer a censura oficial, mas não a guerra do dinheiro, que é outra forma de censura. As agências de publicidade fecharam--me a porta na cara, ninguém queria associar-se." Alguns anos passados, ainda pondera um regresso, que teria de ser economicamente viável. "E em papel, não na internet, porque o gozo é ver uma revista assim nas bancas. Uma verdadeira chapada." A influência, essa, ainda perdura. "Acho que a revista ajudou muitos artistas e escritores a transgredirem. E isso foi ótimo. Gosto de me sentir no papel da pessoa que transgride. Mas gosto ainda mais de incitar.os outros a transgredirem." Para Haddad, o feminismo deve encarar o homem como "um aliado em vez de um inimigo" e não precisa de rejeitar a feminilidade ("entendo-a como uma demonstração de força, não de fraqueza"). Quanto à figura lendária de Xerazade, a narradora das Mil e Uma Noites que todos os dias inventa uma história para sobreviver à morte, decidiu atacá-la no seu livro para a salvar. "Em 2017, já não é aceitável que uma mulher negoceie a sobrevivência diante do poder masculino. Aliás, gosto de me considerar uma Xerazade do século XXI. Ou seja, uma mulher que conta as suas histórias não para escapar a uma condenação mas para afirmar a sua liberdade."
José Mário Silva in Revista do Expresso, 21/10/2017
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